Uma das primeiras reações ao lançamento do ChatGPT, aberto ao uso público no início deste mês, foi de professores universitários americanos. O sistema atua como uma janela de chat. Pergunte sobre o conceito de liberdade segundo o filósofo fulano ou peça um resumo de Hamlet, e o sistema não dá apenas uma resposta coerente. A resposta é incrivelmente profunda, às vezes até sensível. Os professores começam a temer que não serão mais capazes de distinguir os trabalhos que alunos de graduação escreveram daqueles produzidos por inteligência artificial. Mas o cenário está posto. Este ano que entra, 2023, será o ano da inteligência artificial generativa — Gen-AI, na sigla habitualmente usada em inglês.
Gen-AI não é novidade. Já estamos faz dois anos brincando com a possibilidade de produzir ilustrações, algumas muito bonitas, a partir de descrições em texto. A popularização dos aplicativos que produzem retratos ao estilo de artistas conhecidos a partir de nossas fotografias está crescendo. Programadores já usam bots para escrever código — descrevem o que querem que a rotina faça, o bot escreve um programinha. ChatGPT é a primeira demonstração pública de que texto com bastante sofisticação, que parece ter sido redigido por alguém que pensa, pode nascer de uma inteligência artificial. Sistemas similares aparecerão com resultados cada vez mais impressionantes.
As consequências vão muito além dos cursos de graduação. Uma versão especializada em Direito poderá produzir sumários da jurisprudência de um caso para um escritório de advogados. A ata de uma reunião, de qualquer reunião, poderá ser redigida a partir da gravação em áudio da conversa. Chats de atendimento ao consumidor se tornarão indistinguíveis de pessoas que tudo sabem e tudo podem resolver. Produzir um pequeno texto jornalístico a partir de um boletim de ocorrência será tarefa para as máquinas fazerem. Um grupo de publicitários poderá convocar o programa a sugerir slogans partindo das características de um produto ou dos valores de uma empresa — se não para usar como resultado final, talvez para se inspirar.
Não há motivo para que a Gen-AI, a inteligência artificial capaz de produzir conteúdo, se limite a texto ou imagens. Pode construir moléculas para a indústria química, circuitos para a de tecnologia. A imaginação é realmente o limite. A Gen-AI não é criativa, tudo o que ela produz surge a partir do que já foi criado antes. Não é capaz de escrever um parágrafo de Guimarães Rosa ou um verso de Fernando Pessoa, não pinta um Van Gogh, mas boa parte da criação humana não exige esse nível de requinte.
O surgimento da Gen-AI, portanto, começará nesta década a acelerar duas tendências fortes. A primeira é que precisaremos de menos ilustradores, menos advogados, menos jornalistas, menos analistas de RH, menos assistentes de todo tipo. O trabalho mais braçal da criação não dura até 2030. Empresas, cada vez mais, poderão produzir mais com menos gente. E isso tudo graças aos algoritmos de inteligência artificial construídos por algo como dez empresas que dominarão por completo o ambiente, venderão os serviços de seus programas e ganharão dinheiro como nunca antes.
A tecnologia não deixará de ser criada, o mundo não voltará para trás, mas não dá para ignorar que essa é uma máquina aceleradora da concentração de riqueza. As nações precisarão se unir para entender como regular esse espaço e, muito provavelmente, sobretaxar a indústria digital para garantir melhor distribuição do bem-estar que a tecnologia constrói. Se o trabalho será menos necessário, que não seja à custa da miséria.
fONTE Pedro Dória (O Globo – 23/12/2022)